Enviado por nosso amigo do Rio de Janeiro e membro do MBNE Cel. Saint-Clair Paes Leme .
O CASO DOS FUZIS EVANESCENTES
Passava um pouco das 17:00. Watson sorveu mais um gole de seu Earl Grey, pousou a chávena na mesinha baixa utilizada todas as tardes para o serviço de chá provido por Mrs Hudson, e rompeu o silêncio até então reinante no 221-B de Baker Street:
-“Então, Holmes, acredita que os fuzis serão recuperados pelo Exército?”.
O detetive, que já ingerira seu Orange Pekoe, enchia de fumo Borkum Riff o volumoso cachimbo Inderwick from Carnaby Street. Acendeu-o com um comprido palito de fósforo, tirou longa baforada, mirou através da janela o início do belo pôr-do-sol, típico de março, prenúncio de Primavera, e deu partida a suas reflexões, num murmúrio que mais parecia conversa com seus botões do que resposta ao velho amigo e assistente.
- “Desnecessário descrever a caótica situação a que chegou a segurança pública na cidade, fruto da incúria de sucessivas administrações locais e provinciais... Era audível o clamor popular por uma intervenção não mais da milícia, imersa em descrença e suspeição, mas de tropas federais... Estas, a seu turno, solapadas ininterruptamente, de diferentes formas, nas duas últimas décadas, por inconformismo político dos que as sucederam no poder, e sucateadas a ponto de lhes faltarem até mesmo víveres para os estômagos de suas tropas, desceram ao mais baixo patamar de auto-estima... Pressão maior ainda vinham sofrendo da sociedade, por estarem sendo empregadas no estrangeiro, a custos impensáveis e benefícios invisíveis para os contribuintes, em tarefas idênticas às que lhes caberia talvez executar por aqui... Impunha-se, pois, evocarem analogia com a mulher de César – não bastava saberem-se capazes de impor a ordem e a autoridade, era mister demonstrarem ao povo essa capacidade... Mas como fazê-lo, se lhes é vedado, por lei, moverem-se de ofício? Se só podem agir quando premidas por fatos graves, por solicitação ou determinação dos poderes civis a que se subordinam? E dentro dessa ordem de idéias... não poderia o primeiro mandatário do País intervir na Província, aplicando-as em funções policialescas, sob pena de cometer suicídio político nestas bandas... Nem poderia a líder provincial, pelas mesmas razões, desmerecer suas milícias, substituindo-as pelo Exército... E muito menos o Alcaide local – poder desarmado – teria força para tanto... Mas... Raciocinemos agora na ordem hierárquica inversa... Sabemos ser, o Alcaide, capaz de engendrar estratagemas dignos de Metternich... E mais agora, quando se aproxima grande evento desportivo internacional que por aqui transcorrerá, sob sua responsabilidade direta, e sobre o qual pesa ainda grande temor – precisamente a segurança dos partícipes... Naturalmente, terá ele se recordado de outros grandes encontros multinacionais aqui sediados nos últimos quinze anos, em que a paz reinou, precisamente, pelo emprego das tropas federais – pax bellica, diria... tão aplaudida pelos eleitores...Seria, pois, conveniente alertar desde já os marginais com uma amostra do que se intenta para daqui a um ano, no que tange à segurança pública...Nada mais propício, portanto, do que um grande ensaio...Mas para tanto, era fundamental um leit-motif, ou seja, algo que, sem imputar características intervencionistas aos poderes federal e provincial, permitisse a saída das tropas às ruas, em colaboração com as milícias, rigorosamente dentro da lei...E a lei o permite, em determinados casos...como, por exemplo, quando do assalto a casernas para expropriação de material bélico...”
- “E assim, as castanhas seriam tiradas do fogo não pelo Alcaide, ou pela líder provincial, ou pelo... Mas Holmes! By Jove! - bradou Watson, atônito – “Não queres dizer que os fuzis...”.
- “... não foram exatamente roubados?” – completou o detetive. E prosseguiu:
- “Lembra-te de que a ação das tropas foi oficialmente aprovada pelo primeiro mandatário, pelo Ministro das Armas, pela dirigente provincial.... e pela opinião pública... Reparaste que a intervenção vem se expandindo, sob vários aspectos, lenta e gradualmente, há sete dias, sem recuar um milímetro? Leste hoje a entrevista, num dos mais importantes de nossos diários, do chefe militar responsável pelas operações, deixando claro, para quem quiser ouvir, que suas forças estão prontas para o que der e vier ?”
- “De fato, é estranho que os chefões do crime não tenham ainda mandado devolver os fuzis evanescentes, para com isso fazerem cessar a intervenção, que já lhes causa considerável prejuízo na venda de entorpecentes...”
- “E mais”, prosseguiu Holmes – “precisariam eles assaltar uma caserna para apossar-se de dez fuzis ? Não lhes seria mais conveniente continuar a munir-se em suas tradicionais fontes contrabandistas, em quantidades bem mais significativas? Por que se arriscariam a provocar situação que afetaria duramente seus lucros escusos? E não lhes causa também certa estranheza conhecerem os assaltantes tão bem o interior da caserna, a ponto de se darem o luxo de escapulir pela porta da frente, sem preocupações maiores?”
- “Mas Holmes, e como terminará tudo isso ? Não há dinheiro capaz de manter tal aparato nas ruas por tanto tempo...Não estão as forças empobrecidas ? E finda a intervenção, voltará tudo a ser como dantes no quartel de Abrantes? Herdará o Inspetor Lestrade o oneroso encargo de manter doravante a efêmera paz de que desfrutamos nesses dias ?
-“Meu caro Watson, há, naturalmente, o receio, por parte de alguns incomodados, de que, sob a alegação de que a tarefa ainda não foi cumprida, a intervenção se perenize, para gáudio da maior vítima do descaso dos políticos – a população, que (sobre)vive à mercê de marginais impunes...Mas tal não ocorrerá, podes estar seguro. Tão logo surjam os fuzis, estejam onde estiverem, as tropas se recolherão a seus quartéis e devolverão o controle dos marginais aos agentes de Lestrade. Não terão solucionado o antigo problema da violência, mas terão deixado clara e eloqüente mensagem, a políticos e eleitores, que estará presente nas mentes destes quando acorrerem às urnas, no pleito geral que se avizinha.”
-“Referes-te a algo contido nesse livro que estás a folhear?”
Holmes serviu-se de generosa dose de seu sherry, que vertera em seu cálice de cristal favorito. Tirou mais uma baforada do cachimbo e, com um sorriso entre irônico e complacente, abriu o livreto, em cuja lombada constava o nome do autor – afamado conselheiro político italiano quinhentista – e leu pausadamente:
“Da tísica dizem os médicos que, a princípio, é fácil de curar e difícil de conhecer, mas com o correr dos tempos, se não for reconhecida e medicada, torna-se fácil de conhecer e difícil de curar”.
Assim se dá com as coisas do Estado: conhecendo-se com antecedência os males que nascem em seu interior, o que não é dado senão aos homens prudentes, devem ser eles sanados sem tardança; mas quando, por não haverem sido reconhecidos a tempo, negligencia-se o seu conhecimento até o ponto em que qualquer um possa percebê-los, contra ele não há mais remédio".