Ótimo artigo!
Segunda-feira, 24 de outubro de 2005
MARCOS SÁ CORRÊA http://nominimo.ibest.com.br/notitia/servlet/
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O referendo saiu pela culatra
Publicidade 23.10.2005 Como diria Juscelino Kubitschek, aquele que o presidente Lula acha que imita, “soltaram o monstro”. Cutucado com vara curta e rombuda pelo referendo sobre o comércio de armas, ele saiu da toca antes da hora prevista. E dificilmente voltará à jaula antes de ir às urnas novamente daqui a um ano, quando estarão em jogo a presidência da República, os governos dos estados e a maioria do Congresso Nacional. Aí, sim, o “não” vai ter a chance de dizer a que veio.
Daqui para a frente, portanto, os políticos que se cuidem. A decisão desse domingo tem tudo para não mudar em nada a segurança das ruas brasileiras. Mesmo porque, votou-se para manter as coisas como estão, por piores que estejam, em vez de fazer de conta que o “sim” era capaz de mudá-las. Logo, a vida pública no país nunca valeu tão pouco como agora. É verdade que, em dia de eleição, ela vale tão pouco quanto a nossa. Mas, nos outros anos, isso dá e passa.
Depois do resultado vem a festa, depois da festa a posse e, com a posse, as nomeações. E assim, até que as decepções reponham as coisas em seus devidos lugares, os eleitos levam para o poder o bafo das urnas, cumprindo ritos de mudança. Mas, desta vez, não há nada para fazer. Dizendo “não”, o país deu um urro com quase 60 milhões de bocas. E, pela lógica do referendo, isso significa que não há nada de automático nem simbólico que as autoridades possam providenciar, para dar a impressão de que entenderam seu recado. Essa votação foi uma deseleição. E por isso, como o 1968 de Zuenir Ventura, tem toda a cara de que tão cedo não vai acabar.
O que sobra do plebiscito é pura indignação represada. O placar da Justiça Eleitoral ainda estava girando, quando a deputada Jandira Feghali, vice-presidente da Frente Brasil Sem Armas, que pregava o “sim”, espremeu numa entrevista para a rádio CBN o suco azedo da derrota, enquanto ao fundo uma voz de criança chamava “mamãe”. Aquilo, disse ela, foi um “não”geral ao governo “em todos os níveis”. Acertou na mosca. O que o brasileiro procurou nesse referendo mal-explicado e inútil foi um jeito de dizer “não”a tudo o que está aí. Fabricou-se, com R$ 270 milhões de investimento em campanha e montagem de urnas eletrônicas, uma versão local, pacífica e ordeira do slogan “que se vayan todos”, gritado a toque de panela pelos argentinos quando lá a coisa parecia mais preta do que aqui.
E esse “não” começa por Lula. É claro, como ressalvou a deputada, que Lula não tinha nada a ver com uma consulta gerada num acordo parlamentar para a aprovação do Estatuto do Desarmamento. E ele até tirou o corpo fora do plebiscito, quando a maré virou de agosto para cá e o “sim”caiu de 80% para 35%. Mas Lula também não teve nada a ver com o que o ministro José Dirceu fazia no gabinete ao lado. Ou com o dinheiro que o tesoureiro Delúbio Soares pôs em sua eleição. Nem sequer com o surto de febre aftosa.
Mas um presidente que nunca tem nada a ver com nada acaba tendo a ver com o que menos espera. A partir desta semana, seus índices de popularidade serão inevitavelmente projetados contra o fundo escuro dos 65% de reprovação genérica que os brasileiros dedilharam domingo nas cabines. Dissolveu-se de uma vez por todas – ou pior, pulverizou-se – a frente de três anos atrás, que somou fiéis de Lula a eleitores capazes de votar em qualquer coisa para declarar o que pensavam sobre os oito anos de Fernando Henrique Cardoso, para inflar um presidente que subiu no palanque depois da campanha e dele só desceu para embarcar no Aerolula.
O eleitorado mudou de rumo, derrubando na virada tudo o que passou por seu caminho. Os institutos de pesquisa, que davam 80% ao ‘sim” em agosto e foram incapazes de vislumbrar o tamanho do “não”. Os formadores de opinião pública, que gastaram suas biografias numa campanha que punha, do outro lado, o deputado Luiz Antônio Fleury e o coronel Ubiratan Guimarães, dois veteranos de Carandiru. Os meios de comunicação, que só na última hora desistiram de liderar uma cruzada contra as armas de fogo para cobrir um plebiscito que estava pronto para dizer outra coisa. E sobretudo os autores da pergunta, que convocaram o brasileiro a proibir votando “sim”, truque inédito, para que nada pudesse dar errado num referendo onde deu tudo errado.
Aliás, tudo não. Dele se tira uma advertência, que talvez faça Lula perder o encanto com as facilidades da democracia direta, que inveja na Venezuela do coronel Hugo Chávez. O “monstro” de Kubitschek é menos domesticável do que se pensa. E, obrigado a se mexer, pôs-se em movimento. Para onde vai, só a eleição do ano que vem poderá dizer. Há o risco de que, livre da obrigação de se dividir entre “sim”ou “não”, ele se disperse. Nesse caso, levará seu rancor para longe das velhas candidaturas, sendo velhas todas as que ele já conhece. Foi o que fez em 1989. E deu no que deu. Foi aquela eleição presidencial que encurralou o país entre Lula e Fernando Collor. E por pouco não o espremeu entre Fernando Collor e Leonel Brizola. Primeiros turnos que encontram o “monstro” solto, ressentido e sem saber para onde ir são ótimos para tirar do nada os candidatos a desastrosos presidentes.
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